Em 1920, a União Soviética tornou-se o primeiro país do mundo a garantir às mulheres o direito ao aborto legal. Dois anos antes, em 1918, o Código da Família, promulgado pelos bolcheviques, havia instituído o casamento civil em substituição ao religioso e estabelecido o divórcio a pedido de qualquer um dos cônjuges. O governo que emergiu da Revolução comunista de 1917 também incentivou a educação feminina e encorajou as mulheres a assumirem os mesmos postos de trabalho que os homens pelos mesmos salários.
A ambição dos bolcheviques ia além de garantir às mulheres os mesmos direitos dos homens. Os revolucionários acreditavam que, na sociedade socialista, seria possível libertar a mulher das tarefas domésticas que, segundo Lênin, embruteciam a mulher e a impediam de participar da vida social e política.
Segundo a historiadora americana e professora da Carnegie Mellon University, Wendy Goldman, os ideais de emancipação da mulher e amor livre que inspiraram o movimento feminista ocidental nos anos 60 e 70 já eram debatidos nos primeiros anos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), na década de 20. Em Mulher, Estado e Revolução: política familiar e vida social soviéticas, 1917-1936, escrito em 1993, mas publicado agora no Brasil pela Boitempo Editorial, Goldman reconta a história do “verão do amor” soviético, que teve fim com a ascensão do stalinismo.
As leis que garantiam os direitos das mulheres soviéticas eram tão avançadas que, segundo Goldman, até hoje algumas delas ainda não foram adotadas por países ocidentais. A legislação soviética previa a igualdade entre homens e mulheres. “As legislações de muitos países não dizem que homens e mulheres serão tratados igualmente. Nos Estados Unidos, nos anos 70, nós tentamos aprovar uma emenda constitucional que afirmasse que a igualdade entre homens e mulheres, mas ela não foi aprovada”, diz. No Brasil, o artigo 5º da Constituição Federal assegura que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.
Para libertar as mulheres, foi proposta a socialização do trabalho doméstico. As tarefas realizadas em casa – e de graça – pelas mulheres passariam a ser feitas por profissionais assalariadas em creches, restaurantes comunitários e lavanderias públicas. O fim do trabalho doméstico era apenas um passo, o objetivo dos bolcheviques era o fim da família, pelo menos como figura jurídica. “Os revolucionários marxistas viam a família como uma organização que mudava com o passar do tempo. As famílias dos tempos das cavernas eram diferentes das famílias que viviam sob o feudalismo, que eram diferentes das famílias do capitalismo”, afirma. Os bolcheviques acreditam que as condições do socialismo possibilitariam o desaparecimento da família como ela existe no capitalismo. “O que não significa que as pessoas deixariam de se amar, de se relacionar umas com as outras e de se relacionar com seus filhos. Mas a família baseada na dependência financeira e na coerção desapareceria.”
Na década de 20, as mulheres soviéticas começaram a ocupar mais e mais postos de trabalho nas indústrias e creches e restaurantes estatais se encarregavam das tarefas antes consideradas domésticas. As novas condições materiais somadas à facilidade para se casar e se divorciar e ao acesso ao aborto permitiram o surgimento de novos arranjos familiares, baseados no amor livre, e não na dependência econômica.
No entanto, “a experiência da liberdade foi muito dolorosa para as mulheres”, afirma Goldman. E a culpa foi, em boa parte, dos homens. A facilidade para divorciar levou muitos homens soviéticos a terem relacionamentos breves com mulheres, engravidá-las e abandoná-las. A irresponsabilidade masculina tornou as mulheres mais conservadoras. Elas passaram a exigir o fortalecimento da família e que os homens fossem obrigados a pagar pensão alimentícia, já que o Estado soviético não tinha recursos para cuidar de todos os filhos do amor livre.
Aproveitando-se do crescente conservadorismo social, em 1936, o governo de Josef Stalin (1878-1953) decretou um conjunto de leis cujo objetivo era valorizar a família, dificultar o divórcio e proibir o aborto. A proibição, que vigorou até 1955, não resultou na diminuição do número de abortos. “Em 1938, o número de abortos já era tão alto quanto em 1935, quando ainda era legal”, afirma Goldman. O desaparecimento da família saiu da pauta dos comunistas e a proposta original de libertação sexual se perdeu.
Segundo a historiadora, a experiência soviética nos leva a refletir sobre a proibição do aborto que ainda vigora em muitos países, como o Brasil. “Nós observamos que as mulheres vão recorrer ao aborto, seja ele legal ou ilegal. Se o aborto é ilegal, elas vão recorrer a métodos perigosos, que podem levar à morte.” Outra lição se refere a possíveis soluções para antigos problemas. Quem vai cuidar das crianças se os pais trabalham fora? Como se dedicar à família se trabalhamos cada vez mais? “A solução que os soviéticos encontraram para a contradição entre a vida doméstica e o trabalho foi a socialização do trabalho doméstico. As feministas dos anos 70 acreditavam na socialização de algumas tarefas, mas perceberam que os homens também podiam fazer sua parte no trabalho doméstico”, afirma Goldman.
O lançamento oficial de Mulher, Estado e Revolução ocorrerá na próxima semana, em três debates com a presença da autora: na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no dia 19; na Universidade de São Paulo (USP), no dia 20; e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dia 21.
Por Ruan de Sousa Gabriel
Fonte: Época
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