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Nélida Piñon por Dalma Nascimento

Leitor, você e eu no universo de Nélida Piñon.

“Década de 1960. Anos rebeldes. Questionamentos abalam o mundo. Tumultos. Reivindicações. Estudantes nas ruas. Estruturas tradicionais desconstruíam-se. Mutações do eixo de gravitação em todos os setores: Artes, Tecnologia, Política, Filosofia, História. Guinada geral. No horizonte da literatura brasileira, dois romances fora dos esquadros narrativos costumeiros sacudiram os alicerces da crítica nacional: “Guia mapa de Gabriel Arcanjo” (1961) e “Madeira feita cruz” (1963). Nesses livros, a escrita infratora aos códigos literários canônicos gerou polêmicas nos donos da cartilha da arte tradicional. Não antenados ao novo tempo que surgia, eles passaram a polemizar o texto de uma jovem jornalista que amanhecia para as letras ficcionais: Nélida Piñon. E bem poucos intuíram – e dentre eles, Eduardo Portella – que, nas letras da novel escritora, sementes de mudanças já germinavam em terras nacionais.

A maioria não percebeu que duendes – aqueles pequeninos gênios do maravilhoso sobre os quais falei no último “post” – “sombrailuminavam” o texto da iniciante narradora. Eles não notaram que havia “algo mais”, na escrita daquela jovem de cabelinho curto, expressivos olhos orientais, dotada de espírito guerreiro a esculpir obstinadamente suas tramas. E, sem fazer concessões, como a descreveu mais tarde Teresa Barros no “Jornal do Brasil”. De fato, os formadores de opinião da época, tão cônscios de si, não vislumbraram que, na iconoclastia daquela estreia, já se manifestava e resplandecia novo momento da arte de narrar.

Mas, a ficcionista, nascida no Rio de Janeiro no mês de maio – portanto, taurina, signo forte –, enfrentou, com a coragem e obstinação de uma Antígona, os velhos padrões dos Creontes da crítica. Sem tergiversar, continuou no trajeto escolhido e hoje, Nélida Piñon, embaixadora de nossas letras, figura entre os nomes da literatura mundial. Com vinte e cinco livros até agora publicados, inúmeras traduções em diferentes idiomas, incontáveis prêmios nacionais e internacionais inclusive o disputadíssimo Príncipe de Astúrias-Letras, além dos títulos de Doutor Honoris Causa conferidos por várias universidades, Nélida Piñon é vitoriosa.

Homenagens e homenagens com frequência são-lhe tributadas. Ainda este ano, a Universidade de Salamanca promoverá o 1º Congresso Internacional de Literatura Brasileira, centralizado na obra, “A república dos sonhos”. Livro que tive o privilégio de ler antes de editar-se e, sobre ele, fazer a primeira palestra no Brasil (Congresso de Campina Grande – Paraíba) e, tempos depois, na Espanha, (III Congresso Internacional de Língua Galego-Portuguesa, na Galiza, nas Faculdades de Vigo e Ourense).

Nos idos de 1960, comecei a acompanhar meio de longe o reboliço de seus primeiros livros e o fogo cruzado dos críticos sobre a produção desconstrutora da romancista. Confesso que de pronto não li o livro. Certa feita, minha amiga Eliana Bueno Ribeiro Vianna Santos mostrou-me na cantina da faculdade um impactante conto de Nélida. Foi meu “Abra-te Sésamo” para frequentar as mágicas joias daquela caverna. Li suas obras e escrevi sobre todas . Grande parte figura em três dos meus livros publicados. As que faltam, estarão nos dois últimos tomos a serem editados para fechar a série dos cinco exclusivamente sobre sua escrita.

“Guia mapa de Grabriel Arcanjo” logo me tocou. Percebi que ali algo estranho me apelava. Com o segundo, “Madeira feita cruz”, mais perplexa e encantada fiquei diante da dicção inusitada, desveladora de outra estética, aliás, iniciada na obra anterior. Surpreendi-me com o desafio de uma autora, tão novinha, a aventurar-se, segura, por inusitadas construções sintáticas, jogos lexicais, violentos anacolutos, inversões frasais a vestirem uma trama bastante arrojada e questionadora.

Num Brasil ainda tradicional, ela colocou em discussão polêmicas questões: o amor, enfocado de forma bem liberta, a mulher, assumindo o seu espaço, os dogmas do Cristianismo analisados à luz de um novo Evangelho. E tudo com fluente naturalidade, no interior de uma história de amor diferente. Para a época, eram ousadias temáticas de uma recém-chegada à cena literária. Essas duas obras em radicalidade se completam. Nelas circula, em essência, a mesma proposta. Temas seminais aí se anunciam, marcando um estilo, que se disseminou com sempre novos matizes em toda a sua produção.

São dois livros imprescindíveis, apesar de complexos, para apreender o pensamento “da filosofia” dessa iconoclasta ficcionista antecipadora de um novo romance, contudo, diverso do “nouveau roman” francês, com o qual vários críticos brasileiros atarantados confundiram sua obra. Dotada da sensibilidade peculiar ao “ser” artístico, Nélida intuiu as pulsações do novo tempo histórico-estético que turbilhonava na Europa. E, com segura consciência, construiu – a seu modo – um romance libertário em todos os níveis. Arriscando-se em sua diferença, assumiu o risco e não o já riscado do cânone opressor.

Sem se importar com a crítica, com proibições, estourou, resoluta, os paradigmas, temáticos e estruturais vigentes. Mergulhou no vigor da diferenciação para aí acolher o aleatório, o intempestivo e o novo a surgir em nudez seminal em “Guia mapa de Gabriel Arcanjo” e “Madeira feita cruz”,no mesmo compasso transformador da virada da Europa na década de 1990. Após tantos embates, sua produção é aclamada pela crítica do mundo intelectual, festejada também nas várias camadas culturais por onde passe.

Mas,ela nunca chega sozinha. Vem acompanhada de uma penca de duendes que, desde os idos dos anos rebeldes de 1960, fizeram morada em suas narrativas. Os mágicos geniozinhos da fantasia perceberam as mudanças que abalaram o mundo. E saíram do reino dos enredos medievais para mostrarem a todos nós, críticos ou não, o que se esconde no discurso narrativo de Nélida Piñon.

Bem, por hoje, chega. Quis situar o leitor no universo da autora. Agora, para distrair-se após essa longa leitura, dê uma olhadinha – se ainda não deu – nas fotos. A mais antiga é de 1989, quando a escritora entrou na ABL. As outras, de vários tempos depois. Verá as diferenças…”

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Sabor Mineiro

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61 respostas a “Nélida Piñon por Dalma Nascimento”

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